Na obra de Platão "Simpósio",
Aristófanes conta como, originalmente, os humanos foram criados com quatro braços, quatro
pernas e uma cabeça com duas caras. E que Zeus, ao sentir o poder dos deuses
ameaçado, separou os humanos em duas partes distintas, e lançou cada metade ao
mundo. Passou a acreditar-se que, algures, haveria uma metade que nos faltava.
A busca pela "cara metade", por uma “alma gémea”, parece estar ainda,
embora que subtilmente, no topo da lista de tarefas a cumprir de muitos de nós.
E isso leva a que, por vezes, numa relação, procuremos no outro as “partes” de
nós que nos faltam, impedindo-nos de olhar o outro na sua singularidade, conhecendo-o
verdadeiramente. Contudo, muitos anos de História, e alguma investigação,
têm-nos mostrado que o verdadeiro desafio das relações não é encontrar a
combinação perfeita, mas negociar generosamente as diferenças.
Por outro lado, aprendemos o amor,
inicialmente, sendo amados pelos nossos pais ou cuidadores, numa relação nada
recíproca. Isto ajuda a que, quando adultos e aparentemente disponíveis para um
relacionamento, muitas vezes, sem nos apercebermos, mais do que desejarmos amar
alguém, procuremos ser amados, procuremos alguém que irá entender todas as
nossas vontades, e que será extremamente paciente, compreensivo e altruísta
para connosco. No fundo, é como se procurássemos trazer para a vida adulta o
que era sentirmo-nos cuidados, perdoados, amados incondicionalmente, pelos
nossos pais. Para além disso, quando em bebés começamos a aprender acerca do
amor, não somos capazes, nem precisamos, de dar a conhecer as nossas vontades e
intenções àqueles que mais nos amam: eles sabem, pura e simplesmente, que
queremos comer, certificam-se de que estamos confortáveis, etc. De certa forma,
os nossos pais moldam a nossa compreensão do que é amar e ser amado.
Infelizmente, muitas vezes, isso é enviesa a nossa compreensão de um “amor
adulto”.
Para complicar ainda mais, no
início das relações as pessoas parecem entender-se profundamente sem precisarem de dizer muito, concordar de uma
forma quase mágica acerca das coisas, sentir uma ligação como nenhuma outra. O
problema é que, enquanto adultos, somos seres extraordinariamente complexos, e
pedir a alguém que nos compreenda a longo prazo sem nos darmos a conhecer, sem
nos “explicarmos” ao outro, é como pedir a alguém que compreenda como funciona
um determinado medicamento no organismo simplesmente olhando para a embalagem.
Ou seja, não compreender o outro quando não se tem uma explicação acerca dele
não revela que somos más pessoas, apenas que somos humanos. Assim, em vez de amuarmos,
ficando ofendidos por não sermos compreendidos, por que não darmo-nos a
conhecer profundamente ao outro? Por outro lado, se, involuntariamente, somos
nós que levamos o outro a amuar, experimentemos tentar aceitar que não é porque
ele seja mau que está estranho e calado, mas porque no fundo está assustado e
com medo, e que, mesmo sendo forte e competente em muitas áreas, por dentro
pode estar apenas a sentir-se como um bebé desprotegido nas mãos de alguém que
parece não saber tomar conta dele. Uma parte da relação amorosa implica aceitar
esta necessidade de “ensinar” ao outro, de uma forma agradável e paciente, quem
nós somos.
Assim, entre os melhores
presentes de amor que podemos oferecer a alguém, estão a genuina abertura e
curiosidade para conhecer o outro, e explicações, tão calmas e detalhadas
quanto conseguirmos, sobre como verdadeiramente somos, em toda a nossa loucura,
complexidade e estranheza.
Ana Luísa Oliveira escreve de acordo com a antiga ortografia.
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